quarta-feira, 14 de janeiro de 2015


sobre começos e fins e começos

termino o ano querendo lembrar meu pai, que morreu em novembro começo o ano querendo celebrar meu pai, com quem aprendi a importância de celebrar cada encontro


proponho uma recriação, de brincadeira, a partir do conto O outro, de Jorge Luis Borges e do poema A revelação do espelho, de José Jambo da Costa (ver diversos 9/10/2010); leio o primeiro há alguns anos, ouvi meu pai recitar o segundo, toda a minha vida
VE - esta música que você está cantarolando, eu conheço
JO - será que conheço o senhor?
VE - quantos anos você tem?
JO - vinte, e o senhor?
VE - oitenta e um
JO - de onde o senhor é?
VE - você é de Passos?
JO - sim, por quê? o senhor é de Passos?
VE - sim, não pode ser, será?
JO - me parece familiar, o senhor mora por aqui?
VE - eu te conheço de algum lugar, como se chama?
JO - Ezequias, e o senhor?
VE - Ezequias
JO - não é possível
VE - como assim? eu fiz teatro e você?
JO - não pode ser
VE - somos diferentes demais e parecidos demais
JO - que sensação curiosa, o senhor se parece comigo
VE - podemos estar sonhando, um com o outro
JO - sim, mas como saberíamos quem está sonhando quem?
VE - você me é estranhamente familiar
JO - eu sou real, logo, o senhor é um sonho, meu sonho
VE - sonho pode ser previsão do futuro
JO - estou me imaginando daqui a quantos anos?
VE - estamos em 2003, uns sessenta, ou talvez eu seja o sonhador
JO - eu, sonho seu?
VE - sonho pode ser memória, meus velhos tempos de juventude
JO - e eu estou viajando demais
VE - mesmo que seja possível, é difícil rememorar e não se encontrar consigo mesmo
JO - será que é isso que está acontecendo?
VE - fico imaginando como devo ter sido 
JO - acho louco demais imaginar o futuro
VE - você quer saber alguma coisa do meu passado, seu futuro?
JO - sim, será que quero?
VE - fulano está assim, sicrano assado?
JO - que apresentações o senhor tem feito ultimamente?
VE - fiz um comercial para a TV, uma encenação da vida de Cristo, na qual fiz Nicodemos, uma ponta num filme da Prefeitura, uma leitura de poemas em Passos
JO - incrível
VE - e você? o que está pensando em fazer?
JO - trabalho no Banco da Lavoura, e vou começar a trabalhar também na Rádio Guarani
VE - claro, como rádio ator, então, estamos, você está em 1942
JO - como anda sua memória?
VE - ela começa a parecer-se cada vez mais com o esquecimento
JO - o senhor se lembra do que ainda não fiz
VE - me impressiona o quanto você é, fui eu
JO - o senhor é que vai ser, sou eu
VE - a diferença é que você ainda é livre para recusar possibilidades
JO - e o senhor não tem liberdade para recusar o que já viveu
VE - que estranho este gesto seu
JO - o senhor me é tão familiar
VE - eu sempre gostei de ficar me olhando no espelho
JO - o senhor parece estar entediado, farto de fazer o que faz
VE - ainda me surpreendo com as coisas de que sou capaz
JO - me assusta saber o quanto sei fingir
VE - me assusta saber quantos sou, fui
JO - gosto de me olhar no espelho
VE - me assusta minha fragilidade
JO - me entusiasma minha chama refletida
VE - olhando pra você, me pergunto, de onde venho, de que vida subterrânea?
JO - olhando pro senhor, me pergunto, pra onde vou? qual o meu segredo?
VE - acho que estou delirando
JO - o senhor me causa medo, fico afim de chorar
VE - você me parece delirante, me dá vontade de rir

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